segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O acaso e o planejamento (ou entre a repetição e a novidade parte II)

Um bom molho de tomate deve conter frutos maduros e tenros quem devem ser cozidos para tirar a pele e os caroços e posteriormente devem ser refogados em cebola e alho. A acidez deve ser corrigida com uma pitada de açúcar ou bicarbonato de sódio e assim temos um molho simples, rápido e normalmente não precisa de muita coisa para ser apreciado com um bom macarrão. Porém, quando adicionamos berinjela a esse molho de tomate temos um molho de sabor completamente diferente, o caponata. Como será que berinjela “caiu” no molho de tomate? Acaso? Dificilmente. Planejamento? Talvez! O fato é que os cozinheiros estão sempre em busca de novidades, mas precisam antes se esmerar para gerar rotineiramente um conteúdo de boa qualidade.
Mesmo assim, a idéia de que imprevistos participam do processo criativo é muito verdadeira. O “erro” é muito bem vindo na cozinha, pois introduzem uma variável que precisa ser administrada e muitas vezes geram uma saída criativa e tornam o produto final muito mais atraente e interessante. Na história da culinária existem alguns desses imprevistos afortunados. Um deles é o pão de massa fermentada. Os padeiros perceberam que a massa de pão, mexida em vasilhas sujas de massa feitas no dia anterior, fabricava pães aerados e maiores. Descobriu-se que havia fermentos (leveduras que contaminavam as vasilhas que os padeiros misturavam a massa) responsáveis pelo crescimento do pão que consequentemente trouxeram uma nova textura e um sabor, para a época, inusitado. Sucesso total e imediato.
Claro que a motivação específica do chef pode também trazer de propósito novidades à mesa fruto de elaboração intelectual e muitos testes.
A grande questão é justamente saber os limites entre a repetição e a novidade. Claro que gostamos de coisas novas e as experiências diferentes podem estar associadas a uma boa dose de satisfação, embora em algumas ocasiões a frustração seja inevitável. Antes de fazer um prato novo passo normalmente alguns dias pensando em variações possíveis que poderiam alterar de maneira marcante um molho de tomate, por exemplo, sem que o sabor seja confundido ou fique mesmo ruim!

Há receitas simples e rápidas que não precisam de muita prática, mas claro que a repetição garante o apuro e o refinamento do sabor de acordo com o gosto do chef. Uma delas é o purê de batata baroa que já é muito saboroso se for feito com manteiga e leite. Para isso, basta cozinhar 1kg de batatas até que estejam tenras e passar pelo amassador de batatas. Depois adiciona-se 2 colheres (ou mais) de manteiga e um copo de leite (250 ml). Simplesinho e gostosinho. Mesmo assim, resolvi incrementar um pouco a receita. Retirei o leite e reduzi a uma colher de manteiga. Entretanto adicionei dois ingredientes que modificaram a receita a ponto de fazer do purê um prato diferenciado e algo mais do que um simples acompanhamento. Basta adicionar dois talos de alho poró (fatiados bem fininhos) e meio copo (125ml) de azeite trufado! O resultado é estupendo. Uma variação planejada que funcionou muito bem.

Para acompanhar, uma boa pedida pode ser a picanha ou o pernil de cordeiro. A picanha é muito simples e deve ser temperada com sal e pimeta do reino moída na hora e depois frita inteira com um fio de azeite e, finalmente, fatiada fina.


O pernil é de preparo mais complexo, pois é necessário marinar com 24h de antecedência. Eu publiquei aqui uma crônica sobre o faisão a alabastro, do Isaías Pessotti, que sugeria uma mistura de vinho branco com alecrim fresco. Eu testei de uma maneira diferente. Eu coloquei alguns ramos de alecrim em uma garrafa de vinho branco por alguns dias. De fato o resultado é um vinho perfumado muito intenso, sem exageros, de coloração levemente dourada. Temperei um pernil de 1,5kg com 2 copos (500ml) desse preparado de vinho branco. Adicionei alho picado (4 dentes), e algumas folhas de louro e muitas folhinhas de alecrim, sal e pimenta do reino. Misturei também mais 2 copos (500ml) de aceto balsâmico. Rega-se ao longo do dia e leva-se ao forno por 20 minutos em aquecimento máximo. Abaixa-se o fogo para o mínimo, onde é assado por mais 1h ou 1h e 15 min ou até que o garfo esteja penetrando na carne e saindo com facilidade. A intervalos regulares 15-20 minutos o pernil deve ser regado.

Para terminar, um vinho tinto. Minha sugestão é um português como o Quinta do Alqueve, 2002. É robusto com notas de baunilha e boa estrutura. Pouco álcool perceptível no nariz e taninos presentes sem que estejam exagerados. Na verdade, esses são apenas rascunhos de receitas. Variações (propositais ou ao acaso) são sempre bem vindas e merecem ser testadas e aprovadas.

4 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Dando continuidade ao assunto, a existência de tentativas é fundamental para que se chegue ao domínio da técnica. Com a repetição surgem as novidades e, algumas vezes, a satisfação. No entanto, imprevistos podem acontecer ao longo do caminho.
Um caso conhecido que gostaria de citar aqui é o descobrimento acidental da penicilina. Em 1928, Alexander Fleming saiu de férias e esqueceu algumas de suas culturas de Staphylococcus em cima da bancada. Quando voltou, percebeu que suas culturas haviam sido contaminadas por um bolor e que ao redor deste as bactérias haviam morrido. Posteriormente, descobriu que se tratava de um fungo do gênero Penicillium, o qual produzia uma substância responsável pelo efeito bactericida. Mais tarde, esta substância foi isolada e purificada. Eis a descoberta da penicilina. Este acontecimento ocorreu ao acaso? Sorte? Independentemente do que tenha ocorrido, não se pode viver em função da ocorrência de eventos aleatórios. Devemos sim executar um planejamento criterioso e minucioso, de forma a evitar imprevistos e perda de tempo / dinheiro. Infelizmente, pelo que tenho observado, não tem sido dada a devida importância a este fato.
Para encerrar, gostaria de abordar um tema muito discutido no campo científico: erros x acertos. Infelizmente, ainda existem pesquisadores que preferem esquecer e descartar os experimentos que não deram certo em vez de explorá-los e amadurecer a partir deles. Neste sentido, concordo com alguns teóricos que dizem que nós aprendemos mais com os erros do que com os acertos, uma vez que os erros podem ser explorados até se chegar ao acerto e os acertos normalmente encerram-se em si próprios.
Um abraço, Ricardo Pereira.

Anônimo disse...

Eu sempre acreditei que o planejamento era a peça mais importante para a ciência. Na verdade como sou uma virginiana ao pé da letra, regia tudo na vida com muita estratégia e planejamento. A vida no laboratório me mostrou que o acaso é muito mais real do que o planejado. Não só no dia-dia como em vários exemplos na história da ciência e da arte vemos que os acontecimentos inesperados trazem muito mais do que seguir o POP. Não precisamos ir muito longe ou voltar muito tempo para ver isso. Outro dia li um artigo sobre como usar um blotting de gel 2-D corado com ouro coloidal junto com uma imunomarcação (Duong PT, Chang FN, 2001). No paper o autor fala da interferência de uma técnica na outra e menciona que o protocolo original sugere que devem ser feitas várias lavagens para melhorar a qualidade da imagem. O autor descobriu que se as membranas secassem por alguns dias a resolução do blotting ficava muito melhor. Ora, quem é que larga suas membranas e as deixa secando propositalmente?! Com certeza ele esqueceu as membranas fora do tampão e resolveu continuar o ensaio para ver o que acontecia. Por sorte, o acaso ajudou ele a publicar esse trabalho. Ou seja, o acaso ajuda a tirar a rotina do processo planejado e traz originalidade.

Unknown disse...

Algumas importantes descobertas na ciência foram obtidas ao acaso porém a precisão na observação e interpretação dos fatos foram fundamentais para a conclusão da importância de tal evento. Ainda assim, acredito que o planejamento pode superar e melhor controlar as variáveis intrínsecas na atividade científica e também aquelas que ainda hoje não nos são totalmente claras. O básico "feijão com arroz" também tem o seu valor.