domingo, 14 de março de 2010

A culinária asiática e a vitamina D: fatores culturais, ambientais e genéticos e a ocorrência de doenças infecciosas.






Um estudo no final da década de 90 trouxe um debate interessante sobre a incidência de doenças infecciosas. Atualmente, retomamos a discussão que tem novos estudos corroborando a hipótese original. Um estudo em questão foi publicado originalmente por Robert Wilkinson no periódico Lancet em 2000 e mostrou que asiáticos de uma etnia vegetariana chamada Gujarati que migraram da Índia e estavam radicados na Inglaterra tinham mais tuberculose que os seus conterrâneos que ainda viviam em sua terra natal. A observação por si só era muito curiosa já que este grupo que vivia em Harrow ao sul de Londres era próspero financeiramente. Portanto, a pobreza por si só não explicaria o fenômeno. A cultura deste povo é muito antiga e com tradições especiais como os casamentos arranjados entre pessoas do mesmo nível social e consequentemente étnico. Ainda a incidência de tuberculose em outras etnias que vivem na mesma área geográfica sempre foi muito mais baixa. Portanto, o grupo de pesquisadores se deparou com uma população homogênea geneticamente, com hábitos vegetarianos e alta incidência da tuberculose.
A investigação demonstrou que os pacientes com tuberculose tinham a carência de vitamina D devido a dieta vegetariana. Mas, porque essa diferença não é observada nos Gujarati que vivem na Índia? Na verdade a deficiência era marcante porque além da ausência de vitamina D da dieta, na área que vivem os Gujarati na Grã-Bretanha tem muita neblina e pouco sol. Assim, a ausência de exposição a luz solar explicam a inabilidade do organismo de converter a pró-Vitamina D em Vitamina D e com isso montar uma resposta imune que restringe o crescimento de patógenos como o bacilo que causa a tuberculose. Isso significa dizer que vitamina D protege contra doenças infecciosas. De fato, a combinação de dieta vegetariana e falta de exposição ao sol para esses grupos significa maior risco de desenvolver tuberculose. Na Índia o risco é menor porque lá mesmo abrindo mão de comer carnes pode-se garantir níveis razoáveis de vitamina D devido a exposição solar adequada. O estudo ainda demonstrou que alguns indivíduos que apresentam uma versão genética incomum do receptor de vitamina D (sigla do Inglês, VDR) tinham uma chance ainda maior de desenvolver tuberculose.
Esse estudo nos mostra claramente que a ocorrência de doenças é um fenômeno complexo. Não basta ter uma alimentação saudável baseado no senso comum. Por exemplo, assume-se que a dieta vegetariana é mais saudável por razões como a facilidade da digestão, a ingestão de produtos mais frescos e "naturais" e ausência da ingestão de hormônios, toxinas e outros conservantes presentes em carnes vermelhas ou brancas. Entretanto, embora esses argumentos sejam válidos, eles são parciais porque impedem o entendimento que carnes possuem riqueza de vitaminas, elementos essenciais e outros nutrientes difíceis de serem encontrados em verduras, legumes, grãos e cereais quando ingeridos sem supervisão de um nutricionista. Não faço aqui a simplificada apologia a dietas ricas em carnes. Não é tão simples assim porque o outro lado sugere que uma dieta rica em carnes vermelhas pode favorecer o desenvolvimento de doenças cardiovasculares.
Então, o processo é complexo e há muitas características que devem ser levadas em consideração. As populações humanas foram se adaptando aos ambientes em que vivem nos últimos 20.000 anos aproximadamente quando começaram as grandes correntes migratórias chamadas para "fora-da-África", onde os humanos foram lentamente se espalhando pelos 5 continentes. Obviamente, os agrupamentos populacionais desde esse tempo foram submetidos a grandes pressões seletivas associadas a disponibilidade de alimento, fuga de predadores e doenças infecciosas. Portanto, as estratégias evolutivas envolvem tanto a seleção natural genética que favorecia os indivíduos que carregavam genes que conferiam vantagens como a resistência a infecções por exemplo, quanto uma seleção cultural baseada na transferência de informações através das gerações como as habilidades desenvolvidas na escolha e no preparo de alimentos por diferentes tribos e povoados. Por exemplo, a pimenta tão comum na culinária entre alguns povos Asiáticos também tem propriedades vantajosas e desvantajosas para a saúde que é dependente da região do planeta em que você vive (mais vou tratar desse assunto mais detalhadamente em outro "post"). Da mesma forma a dieta que privilegia ingestão de alimentos crus deve ter a prerrogativa de comer sempre alimentos frescos e livres de parasitas e bactérias. Portanto, se você quiser comer uma tartar de atum certifique-se da procedência e das condições de armazenamento. Ah, é corte bem fininho e coloque um fio de azeite, shoyu e salpique sal e coentro e ou cebolinha e tá pronto!


VOltando aos Gujarati, podemos imaginar que a mudança para a Inglaterra podia até garantir aos migrantes a vida em um ambiente mais estável economicamente. Entretanto, é curioso que a transferência para um ambiente sem muita luz solar que eles não estavam adaptados também os tornou mais suscetíveis a tuberculose. As escolhas sobre as dietas não devem ser simples. É necessário que elas sejam entendidas e discutidas a luz da evolução e adaptação da nossa espécie. E o que faz bem ou mal para as pessoas pode ser diferente de acordo com o ambiente e os genes que constituem aquele indivíduo ou população.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Bebo porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia.


A frase é atribuída a Jânio Quadros em um episódio onde um jornalista perguntou o motivo de beber tanto. Pois bem se Jânio fosse vivo isso não seria mais um problema. Agora é possível comer “bebidas” como caipirinhas, e outros drinks. Atualmente, algumas revistas de entretenimento e lazer tem apresentado os drinks da moda e muitos deles são baseados na gastronomia molecular. Na verdade, bartenders tem usado ciência nas suas coqueteleiras, embora talvez não saibam exatamente como. De qualquer forma, a possibilidade de solidificar uma bebida clássica traz uma novidade interessante a uma receita simples. Provavelmente os mais conservadores não aprovam essas variações. De fato, a invasão de receitas baseadas em conhecimentos científicos sobre química, física e biologia tem modificado o cenário e as receitas por detrás do balcão. Assim, pode-se obter hoje nitrogênio líquido para atingir temperaturas muito baixas, soluções com alginatos e sais de cálcio para se fazer esferas que viram uma espécie de caviar alcoólico (ou não)... Legal, né?
É saudável a discussão sobre a forma com que essas novidades tem surgido e impregnado as cozinhas de profissionais e amadores por todo o mundo. Modismo ou não, os criadores da gastronomia molecular tinham o interesse de resolver problemas simples das receitas gastronômicas. Nas palavras de Nicolas Kurti um dos fundadores das reuniões em Erice na Itália que albergam 40 Chefs e cientistas para discutir a ciência na cozinha: “Sabemos mais a respeito da distribuição de temperatura na atmosfera de Vênus do que no interior de um suflê” (mais sobre esse evento pode ser lido no interessantíssimo A ciência no Cotidiano de Len Fisher). O fato é que da maneira com que a gastronomia molecular é feita hoje, onde compra-se os produtos e receitas dos grandes líderes desse movimento, dificilmente teremos realmente o conhecimento científico sobre o procedimento a serviço dos chefs que, a princípio, poderia favorecer a discussão detalhadas de receitas e o apuro completo do processo. Mas o que fica e a pergunta: será que esse conhecimento é realmente necessário? Talvez apenas o saber fazer seja suficiente para a maioria. Claro que alguns precisam tentar entender e explicar os fenômenos científicos por detrás das porque facilitariam o avanço das receitas. Será mesmo? Durante quanto tempo vivemos sem a gastronomia molecular. Gosto de pensar que entender, explicar e justificar o mundo é uma obsessão humana, mas ela definitivamente não é necessária. Até ajuda bastante, mas necessária não é!
Polêmicas a parte, para fazer uma caipirinha sólida é simples basta misturar gelatina ou ágar (que é um açúcar derivado de algas que é o mesmo produto que se usa para fazer aquelas balinhas de alga vendidas em lojas de produtos naturais). A vantagem do ágar é que ele fica sólido a temperatura ambiente. A gelatina também apresenta a mesma consistência, mas alguns minutos a temperatura ambiente ela ficará líquida. A diferença está no ponto de fusão da gelatina e do ágar, ou seja, a temperatura que o líquido se solidifica. Para fazer caipirinha de ágar basta misturá-lo com água (uma colherzinha de sobremesa cheia para meio copo de água. Depois leve ao microondas por 1 ou 2 minutos e deixe esfriar um pouco. Depois adicione suco de limão, açúcar e cachaça a gosto (normalmente dois limões espremidos, duas colheres de chá de açúcar e duas doses de cachaça fazem muitas balinhas).
Bom agora é deixar esfriar a temperatura ambiente ou na geledeira. Boa caipirinha nova.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Cozinho com vinhos. De vez em quando até o coloco na comida










A citação que ilumina essa crônica é de W.C. Fields (1880-1946) que foi ator e comediante norte-americano. Retirei-a da agenda gourmet 2009. Na verdade essa frase é a síntese do último jantar que eu e Mauro preparamos. Um grande amigo nosso, Stevens “Bitty” Rehen, fez aniversário e oferecemos para ele um jantar. Na verdade, se eu soubesse com antecedência que seriam 40 convidados teria pensado duas vezes antes de me prontificar a cozinhar. Nada demais... Entretanto para alimentar 40 pessoas são necessárias algumas providências para evitar surpresas. De qualquer forma, resolvemos fazer pratos simples: um Buccattini a la matriciana e dois risotos: um de carne seca com abóbora e outro de funghi. Como sabíamos que seria uma pequena tropa em uma sexta feira, resolvemos deixar molhos e outros ingredientes pré-cozidos para acelerar o processo. Assim, Mauro curtiu seu delicioso molho de tomate levemente adocicado em fogo baixo por 3 dias. Claro que o processo envolve vários estágios, onde o molho depois de “quase” pronto vai e geladeira e ao fogo baixo em intervalos de 4-5h por dia (normalmente a noite). No dia bastou fritar o bacon misturar e cozinhar o buccattini! Excelente... Primeiro prato elaborado em 30 minutos e servido aos ansiosos convidados imediatamente. Não durou nem 5 minutos. Foi chegar e servir! Cinco quilos de molho de tomate em 0,5kg de bacon e 2 kilos de macarrão sumiram num piscar de olhos.
Fomos ao segundo prato, mas não sem antes abrir um vinho! Embora o Bitty seja um grande amigo ele é conhecido pelos antigos companheiros por delegar tarefas e com isso não fazer nada. Foi o que aconteceu na festa. Helena Borges, a esposa, comprou e compôs a mesa de frios, eu e Mauro preparamos tudo para o jantar e o Bitty se divertiu. Tudo bem, era seu aniversário, mas tínhamos que aprontar-lhe alguma. Estávamos cozinhando no apartamento e a festa acontecendo no playground. Quando subimos para o segundo prato, Helena nos perguntou se queríamos um vinho dissendo que tinha uns tintos especiais reservados no apartamento. Não titubeamos! Era nossa vingança. Helena rapidamente percebeu que cometera um engano, mas não havia mais saída. Tomamos de assalto e revistamos o apartamento. Encontramos um Bordeaux que nos deixou saudade porque foi consumido quase em tempo real. Bom, ainda tínhamos que cozinhar. Levei a carne seca (1kg) desalgada, escaldada e desfiada. A abóbora (1kg) estava apenas cortada em pedaços para 1kg de arroz arbóreo. Daí, fiz o procedimento de rotina, dourei duas cebolas picadas em manteiga no fogo alto e misturei o arroz que foi refogado por dois minutos. Adiciona-se 400ml de vinho branco de boa qualidade e a partir desse ponto o arroz precisa ficar em constante movimento. Até a evaporação quase completa, e, então, se adiciona o caldo de carne (comercial mesmo diluído na água de cozimento da abóbora) aos poucos e junta-se a maior parte da abóbora (reserve um pouco para ficar em pedaços). Cozinha-se o arroz dessa forma por 15-18 minutos e adicione a carne desfiada (ela já deve ter sido refogada na manteiga com cebola) mais manteiga e queijo parmesão. A dica é colocar uma série de ervas de tempero como alecrim, orégano fresco, tomilho e manjericão. Cria um bouquet fenomenal e contribui para o frescor do prato. Taí um prato para ser servido para muitos em pequenas porções que fez a alegria da garotada!! Na verdade, todo o processo deu uma trabalheira, mas a felicidade de um grande amigo é realmente impagável. E convenhamos festas regadas a boa comida e excelentes vinhos dificilmente dariam errado...




Vejam também os vídeos que talvez exemplifiquem em imagem essa confraternização (http://www.youtube.com/watch?v=YApvhvh7u1A; (http://www.youtube.com/watch?v=IdOUdg6-46U). Talvez a imagem aí do lado da Juliana saboreando o risoto também seja um bom exemplo! Que venham mais festas e encontros. Afinal, cozinho com vinhos: na comida e na corrente sanguínea!




segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Um prato tailandês para o verão do Rio. Será que combina?

Nessa época do ano, os sites especializados de culinária e as colunas de gastronomia costumam publicar receitas de verão, como se estivéssemos obrigados a comer apenas receitas leves e harmonizadas com o clima quente. É tempo também de vários colunistas defenderem o vinho branco, o espumante e o vinho rosé. Nada contra, mas depois de diversos avanços tecnológicos como, por exemplo, o ar condicionado, não há porque ter hábitos alimentares restritivos no verão. Claro que não defendo o churrasco ou a feijoada em uma noite úmida de 35oC. Afinal, mesmo que o ambiente esteja climatizado, seja em casa ou em um restaurante, na saída pode-se haver surpresas! De qualquer forma, não é absurdo termos situações intermediárias, onde os pratos principais não são os velhos conhecidos da temporada como as sopas frias ou saladas. Uma das boas pedidas que ficam nesse intervalo é a comida “tailandesa” que está ente aspas porque aqui, no Brasil, tem sido rapidamente absorvida e transformada. Neste aspecto, as receitas tailandesas e indianas se misturam e os temperos precisam ser adaptados para o cozinheiro de casa. Um filé mignon em curry vermelho abrasileirado é uma receita de fácil execução e extremamente saborosa.
Para se fazer curry vermelho, basta fazer um molho de tomate com ½ kg de tomates pelados e sem caroço (pode-se cozinhar e bater no liquidificador para facilitar o processo). Depois de peneirado adicione ao molho: 1 pimentão vermelho inteiro sem caroços, um pedaço de gengibre (pequeno), pedaços inteiros com folhas e caules de coentro (salve algumas folinhas para decorar o prato no final) e também cebolinha (um molho de cada é suficiente). Ainda bata a pimenta dedo de moça, que deve ter os caroços retirados, e ainda, deverá repousar em água fria por 20 minutos. A quantidade de pimentas deve ser definida pelo o quanto “quente” as pessoas querem o seu prato. Duas pimentas é uma quantidade leve. Se cinco ou mais pimentas forem usadas a sensação de ardência será deliciosamente inevitável. Adicione ainda 3 colheres de Shoyu e ainda uma colher de óleo de gergelim torrado. Bata tudo até ter um molho homogêneo e reduza o volume a 2/3 do total (deve estar com um aspecto espesso) em fogo baixo.

Paralelamente, Deixe o 1 kg de filé mignon partido em pedacinhos (como se fosse o picadinho) repousando por 30 minutos em pimenta do reino moída.


Corte uma cebola grande e 3 dentes de alho. Em uma panela grande como a wok, refogue as cebolas e depois o alho em azeite (ou óleo de gergelim torrado ou até mesmo uma pouquinho de azeite de dendê pode ser utilizado nessa fusão inusitada) e refogue, então, o molho. Abaixe o fogo e “curta” por 5 minutos. Adicione sal à carne, derrame na wok, e, cozinhe por 2-3 minutos. É muito importante o tempo de cozimento, pois após muito tempo a carne perde muita água e, consequentemente, a maciez e suculência. Claro que dependendo do tamanho dos pedaços o tempo requerido pode ser maior ou menor. A dica é espetar um pedacinho de carne e prová-la! Para terminar adicione as folhinhas de coentro e uma garrafinha de leite de coco. Ainda é opcional adicionar frutas como abacaxi ou carambola. Se quiser, esse é momento! Está pronto para servir. Claro que a carne pode ser substituída por camarão, frango, lula, cordeiro ou mesmo tudo junto. Tenho que confessar que tudo junto nunca provei! Um acompanhamento necessário e uma invenção interessante para cortar a pimenta é o arroz Basmati que pode ser feito apenas na água e sal ou pode ser feito do jeito tradicional refogado na cebola e no alho. Adicione 3 copos de água fervente para um copo de arroz (ele pode ficar levemente grudento). Salpique folinhas de salsa por cima do arroz depois de pronto. Uma bossa especial é fazer o arroz croc-croc do Claude Troisgros. Para isso, basta fritar arroz preto selvagem por alguns segundos secar, salgar levemente e jogar por cima do arroz basmati. Uma variação para acompanhar é o macarrão. Simples para misturar ao molho depois!

Para beber? Caipifrutas com muito gelo (misture uns raminhos de hortelã antes de amassar o limão que o resultado é divino, gengibre em conserva e manjericão também agradam), cervejas encorpadas como a Weinhenstephaner de média graduação alcoólica (7,7%) são sempre excelentes opções. Ainda, vinhos tintos jovens de uvas malbec, merlot, ou pinot noir como os franceses da Borgonha de baixa graduação alcoólica (11-12,5%), por exemplo, também formam um bom par!
Tudo bem que no verão pimenta e vinho são bem vindos, mas não abusem e bebam muita água! Bon apetit.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O acaso e o planejamento (ou entre a repetição e a novidade parte II)

Um bom molho de tomate deve conter frutos maduros e tenros quem devem ser cozidos para tirar a pele e os caroços e posteriormente devem ser refogados em cebola e alho. A acidez deve ser corrigida com uma pitada de açúcar ou bicarbonato de sódio e assim temos um molho simples, rápido e normalmente não precisa de muita coisa para ser apreciado com um bom macarrão. Porém, quando adicionamos berinjela a esse molho de tomate temos um molho de sabor completamente diferente, o caponata. Como será que berinjela “caiu” no molho de tomate? Acaso? Dificilmente. Planejamento? Talvez! O fato é que os cozinheiros estão sempre em busca de novidades, mas precisam antes se esmerar para gerar rotineiramente um conteúdo de boa qualidade.
Mesmo assim, a idéia de que imprevistos participam do processo criativo é muito verdadeira. O “erro” é muito bem vindo na cozinha, pois introduzem uma variável que precisa ser administrada e muitas vezes geram uma saída criativa e tornam o produto final muito mais atraente e interessante. Na história da culinária existem alguns desses imprevistos afortunados. Um deles é o pão de massa fermentada. Os padeiros perceberam que a massa de pão, mexida em vasilhas sujas de massa feitas no dia anterior, fabricava pães aerados e maiores. Descobriu-se que havia fermentos (leveduras que contaminavam as vasilhas que os padeiros misturavam a massa) responsáveis pelo crescimento do pão que consequentemente trouxeram uma nova textura e um sabor, para a época, inusitado. Sucesso total e imediato.
Claro que a motivação específica do chef pode também trazer de propósito novidades à mesa fruto de elaboração intelectual e muitos testes.
A grande questão é justamente saber os limites entre a repetição e a novidade. Claro que gostamos de coisas novas e as experiências diferentes podem estar associadas a uma boa dose de satisfação, embora em algumas ocasiões a frustração seja inevitável. Antes de fazer um prato novo passo normalmente alguns dias pensando em variações possíveis que poderiam alterar de maneira marcante um molho de tomate, por exemplo, sem que o sabor seja confundido ou fique mesmo ruim!

Há receitas simples e rápidas que não precisam de muita prática, mas claro que a repetição garante o apuro e o refinamento do sabor de acordo com o gosto do chef. Uma delas é o purê de batata baroa que já é muito saboroso se for feito com manteiga e leite. Para isso, basta cozinhar 1kg de batatas até que estejam tenras e passar pelo amassador de batatas. Depois adiciona-se 2 colheres (ou mais) de manteiga e um copo de leite (250 ml). Simplesinho e gostosinho. Mesmo assim, resolvi incrementar um pouco a receita. Retirei o leite e reduzi a uma colher de manteiga. Entretanto adicionei dois ingredientes que modificaram a receita a ponto de fazer do purê um prato diferenciado e algo mais do que um simples acompanhamento. Basta adicionar dois talos de alho poró (fatiados bem fininhos) e meio copo (125ml) de azeite trufado! O resultado é estupendo. Uma variação planejada que funcionou muito bem.

Para acompanhar, uma boa pedida pode ser a picanha ou o pernil de cordeiro. A picanha é muito simples e deve ser temperada com sal e pimeta do reino moída na hora e depois frita inteira com um fio de azeite e, finalmente, fatiada fina.


O pernil é de preparo mais complexo, pois é necessário marinar com 24h de antecedência. Eu publiquei aqui uma crônica sobre o faisão a alabastro, do Isaías Pessotti, que sugeria uma mistura de vinho branco com alecrim fresco. Eu testei de uma maneira diferente. Eu coloquei alguns ramos de alecrim em uma garrafa de vinho branco por alguns dias. De fato o resultado é um vinho perfumado muito intenso, sem exageros, de coloração levemente dourada. Temperei um pernil de 1,5kg com 2 copos (500ml) desse preparado de vinho branco. Adicionei alho picado (4 dentes), e algumas folhas de louro e muitas folhinhas de alecrim, sal e pimenta do reino. Misturei também mais 2 copos (500ml) de aceto balsâmico. Rega-se ao longo do dia e leva-se ao forno por 20 minutos em aquecimento máximo. Abaixa-se o fogo para o mínimo, onde é assado por mais 1h ou 1h e 15 min ou até que o garfo esteja penetrando na carne e saindo com facilidade. A intervalos regulares 15-20 minutos o pernil deve ser regado.

Para terminar, um vinho tinto. Minha sugestão é um português como o Quinta do Alqueve, 2002. É robusto com notas de baunilha e boa estrutura. Pouco álcool perceptível no nariz e taninos presentes sem que estejam exagerados. Na verdade, esses são apenas rascunhos de receitas. Variações (propositais ou ao acaso) são sempre bem vindas e merecem ser testadas e aprovadas.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Entre a repetição e a novidade ( ou entre a simplicidade e a ousadia)

O prazer proporcionado pela execução de uma receita é observado não apenas no final do processo com profusão de elogios ao chef. Óbvio que esse é o “Grand Finale” e saborear um prato bem executado é maravilhoso para quem degusta. Entretanto para o cozinheiro, a certeza de uma boa receita começa com a execução perfeita e as etapas concluídas de acordo com o esperado. A simplicidade reside na objetividade, rapidez e exatidão de uma receita seguida de um bom resultado. Normalmente, esse resultado é obtido com a repetição ad nauseum da mesma receita que confere ao chef tranqüilidade para execução rotineira e certeza de dever cumprido. Gosto muito de uma analogia que podemos fazer da culinária com a arte. Se observarmos os estudos feitos por Picasso para o seu “Touro” observamos que ele partiu de uma imagem extremamente complexa e pesada, mas muito rica e bem elaborada até chegar a versão abstrata do touro que é inegavelmente um bovino chifrudo, mas com leveza no traço e fina harmonia (veja mais em centelha de gênios por Robert e Michelle Bernstein). Como foi feita a transformação? Com muitos rascunhos. Há uma seqüência grande de imagens que demonstra o caminho percorrido por Picasso para chegar até “O Touro”. Até chegar aquele resultado final de poucos traços, Picasso repetiu a mesma “receita” algumas vezes introduziu pequenas modificações aos poucos até chegar ao resultado final com uma receita original, nova e ousada. Certamente a criação do novo foi um projeto de muita repetição que propiciou o salto, a mudança. O simplicidade é prima de primeiro grau da ousadia.


A analogia serve bem para a cozinha, pois Ferran Adriá chega a uma “abstração” quando obtém texturas com algin, que são pequenas esferas que lembram caviar, mas que podem ter o gosto que quiser como o de melão.
Essa fusão subverte os sabores tradicionais. Como se víssemos uma carta de baralho com um Rei de copas preto! Ou mesmo quando olhamos um quadro de Picasso em sua fase cubista e vemos rostos quadrados. Para uma experiência completa devemos abstrair e olhar profundamente, além dos riscos no papel ou na tela. Comidas esferificadas ou gelificadas de Ferran Adrià, entre outros que seguem a linha molecular da gastronomia, rompem com o paladar convencional e, por isso, temos que saborear com as expectativas de ir além, de experimentar sem preconceitos, e com os sentidos aguçados para identificar o novo na mistura com o antigo apenas com uma apresentação diferente.


A boa notícia é que a maioria dos componentes de “kits” com as novidades introduzidas por Ferran Adrià podem ser garimpadas em lojas especializadas sem os nomes chiques e os preços assustadores. Por exemplo, para se fazer comidas gelificadas pode-se comprar Agar que é um açúcar isolado de algas que tem um ponto de fusão bem alto e, portanto, apresenta-se em forma de gelatina a temperaturas de servir comidas quentes (em torno de 40-45oC). Que tal um bife gelatinoso? Para atingir o ponto de gel é importante aquecer, como na gelatina, até obter uma solução homogênea. Para cada meio copo (100ml) algo como 1g de Agar (uma colher de café rasa) é suficiente para um gel consistente e saboroso. É necessário também um pouco de desapego aos sabores tradicionais. Portanto, basta adquirir os novos ingredientes e experimentar, ousar e testar receitas antigas com novos um ingredientes para surpreender a si mesmo e aos amigos. Seja diferente e boas receitas novas!

domingo, 28 de setembro de 2008

O faisão a alabastro e a genialidade na cozinha

Na década de 90, Isaias Pessotti escreveu “Aqueles cães malditos de Arquelau” (editora 34) que é uma romance delicioso de ser lido, pois o autor é capaz de desvelar toda sua erudição em textos cativantes que apresentam uma investigação histórica com pitadas de humor em um Itália dos anos 60, onde homens cultos e engraçados se envolvem com mulheres lindas e inteligentes, ou seja, o mundo perfeito! Entretanto, a maior qualidade de Isaías é a capacidade de descrever as paisagens onde esses encontros acontecem e, acima de tudo, as grandes refeições, onde as pessoas se deliciam de pratos e idéias absolutamente fenomenais. Em “Aqueles cães”, um jovem grupo de pesquisadores entre historiadores, filósofos, psicólogos, e escritores do Instituto Galilei está desvendando um mistério sobre o conteúdo de um livro escrito na Itália de 1500. Entre as discussões que vão ajudando os protagonistas a elucidar o enigma, historietas comuns de amor e desejo interpelam nossos heróis. Logo no início, um belo trecho apresenta uma “teoria sobre a genialidade”, que utiliza como modelo, a culinária, mais especificamente a cozinha do Menarost uma tratoria no caminho para Sant´Ilario. O dono do restaurante, Giulio, descreve como a Chef, sua esposa Lisa, é capaz de cozinhar com brilhantismo: “Lorenzo (que é um dos estudiosos do Galilei) definiu as coisas: então temos ingredientes e temperos. Os temperos são produtos dos ingredientes e um mesmo produto pode resultar de diferentes misturas de ingredientes.
- Bravo Professore (respondeu Giulio). Lisa é capaz de produzir os sabor que ela quiser com as mais diversas combinações de ervas, licores, vinhos e especiarias. Foi assim que ela produziu sua receita original (...). Lisa descobriu que uma mistura de vinho branco forte e seco , não muito maduro, combinado com alecrim, tem o aroma dos grandes destilados alpinos, e o sabor dos conhaques mais secos: isso significa uma série de vantagens. Exclui-se o conhaque, e com ele, o sabor licoroso ou adocicado e a cor mais escura da carne e do molho. O faisão ganha uma leve cor dourada, puxando mais ao ouro do que ao cobre. Mais ainda ela descobriu que o faisão fica mais macio e úmido, se antes de ir ao fogo, passar uma noite nessa mistura de vinho branco, tipo Malvasia e alecrim. Mas há uma detalhe sobre o alecrim: tem que ser colocado principalmente sobre a pele do faisão. Após algumas horas de repouso, o faisão desprende um perfume delicado e alcoólico, como se os aromas do vinho e do alecrim se fundissem num perfume novo (...).
- Desculpe Giulio(disse Lorenzo), eu entendo que Lisa criou uma receita nova e deliciosa. Mas qual é a diferença entre novidade e genialidade de uma receita?
Giulio esperava a pergunta. Respondeu categórico e quase complacente ante a nossa incompetência:
-Uma receita é genial quando tem três qualidades. Ela deve ser original, uma solução superior para obter um certo prato, e deve produzir novas receitas ou aplicações a outros pratos. A de Lisa é genial por tudo isso: é completamente nova, resolve melhor os problemas do preparo do faisão, como sabor umidade, cor, aroma e, em terceiro lugar, já ficou um estilo uma marca dos pratos de Lisa. Ela já melhorou ou criou, depois disso, várias receitas para frango, pombo, peru, e até certos pratos de vitela” (Aqueles cães malditos de Arquelau, Isaías Pessotti págs 39-40).
Ainda não consegui reproduzir a receita de Lisa, mas concordo com Giulio que uma receita é genial quando apresenta três características simples: originalidade, superioridade (no sentido de ajudar a explicar e resolver problemas), e aplicabilidade em outras receitas.
Se pensássemos em genialidade em outros exemplos de arte como a pintura, muitos movimentos, como o impressionismo, foram geniais porque modificaram uma estética a base de uma técnica muito apurada, em conjunto com características subjetivas e libertárias como a abstração. Assim os grandes mestres do impressionismo como Edouard Manet e Claude Monet alteram uma visão dominante de mundo nas artes no final do século XIX. A obra “impressões-sol nascente” de Monet nomeou o movimento e norteou uma grande quantidade de produções artísticas porque apresentaram ao mundo uma “receita” original, superior, e aplicável (técnica e artisticamente). A partir daquele momento inúmeros artistas passaram a aplicar o novo e original conceito ao conceber suas obras. Portanto, a genialidade na cozinha, na arte ou na ciência é um ato de profundo conhecimento que pode ser considerada explosiva porque normalmente ultrapassa barreiras, funde idéias, articula noções que estão espalhadas e altera bruscamente visões de mundo criando alternativas. Isso em gastronomia significa fundir ingredientes para criar temperos diferentes que são largamente utilizado, ou mesmo novas estratégias de assar ou cozinhar ou pernil de cordeiro. Mais recentemente, Chefs de cozinha recorrem ao conhecimento científico para ajudá-los nas explicações para que isso possa servir de base para a criatividade integral.